terça-feira, 17 de abril de 2012

O Mal de Hama

Já fiz todo tipo de conta e não me vem qualquer resultado que justifique o ódio alimentado por alguns muçulmanos pelos judeus. Abdulah sempre que me encontrava, beijava meu rosto e me saudava com “shalom” (paz). Eu retribuía o fraternal carinho e respondia – “Aleikum al salam” (aos que chegam, que venham em paz).

Eu já era graduado quando ele dava os primeiros passos na suave arte do Jiu Jitsu. Na última vez que veio ao Brasil treinamos juntos. Com ele já formado escapei de levar uma surra de alguém 20 anos mais novo por que apenas apontava os golpes e a cada instante perguntava – c’est bien? Afinal, historicamente somos filhos do mesmo pai.

Eu nem tenho como culpar o velho, olhando todos os dias a bela Agar, que o encantava levando água nos cântaros. Seus preenchimentos, na medida certa apenas para afirmar que ali a vida existia, seu sorriso jovial, que não era um convite, mas uma intimação e a medida de seus passos, matematicamente exatos para o balanço meio contido de seus quadris, que dava ao seu caminhar uma espécie de dança do ventre, transtornava o homem de dentro para fora.

Quase dois mil anos depois, nascia em uma região próxima, no mesmo médio oriente, a simpática Fath’ma, filha de um comerciante que após uma vida difícil, se fez líder político e espiritual. Perdera o pai antes mesmo de nascer. Durante sua infância ficaria ainda sem a proteção de sua mãe e de seu avô, tendo sido abrigado então por um tio, mentor e amigo. Ali viria a se casar com Fath’ma e se tornaria mais um problema no pós vida do sogro.

Mohamad, pai de Fath’ma e fundador do islamismo, não só gostava dos judeus e de seus dissidentes, os cristãos, como foi garimpar seus princípios religiosos e buscar neles apoio às suas aspirações políticas. Mesmo frustrado nessa investida, sempre teve para com esses grupos um tratamento diferenciado. Puniu com muito mais energia e rigor, parte de seu próprio povo que não aderiu à nova ordem. É considerado por seus seguidores o último profeta, depois do próprio Abrahão, seu filho e neto, do rei Davi e de Jesus. Foi um iconoclasta e como os judeus, afirmava que “Adonai echad” – Deus é único.

Sua morte ensejou um cisma entre aqueles que defendiam a permanência da liderança com os mais velhos, segundo a “suna” - tradição - e os que a esses se opunham, o grupo do “xia” – camarada - Ali. Sunitas e Xiitas vivem às turras, até os dias de hoje e são os maiores algozes de si mesmo. Depois dos russos e americanos, vieram os talibãs ao Afeganistão, provocando ao seu povo, mais sofrimento e dor do que os estrangeiros que por ali passaram.

No início de fevereiro de 82, a cidade Síria de Hama viveu uma das mais expressivas manifestações da crueldade humana. Um destacamento do exército entrara na cidade a procura do líder Abu Bakr, um fundamentalista sunita, que teria usado os autofalantes das mesquitas, antes com a função de convocação às orações, para conclamar o povo a um levante. Começava um capítulo de ódio raramente testemunhado na história, por ter ocorrido entre irmãos. Invadiram as casas de simpatizantes do governo, promovendo uma “purificação” de fazer corar Gengis Kahan.

Não tardou a retaliação pelos donos do poder. Com requinte de crueldade perpetraram um massacre que mal encontra paralelo com o setembro negro patrocinado pelo hachemita Hussein da Jordânia em 1970. Não satisfeitos em bombardear durante 3 semanas, dos céus e das montanhas, as casas da velha cidade, com seus cerca de 40.000  civis, passaram por sobre os escombros moto niveladoras, deixando a mostra partes do que havia sido uma comunidade. Pedaços de móveis, utensílios e porque não, restos de corpos que apodreciam ao léu. Foram responsáveis o pai e o tio do assassino de plantão e atual ditador da Síria e considerado o maior ataque de um governo contra seu próprio povo.

Diziam que era preciso mostrar do que eram capazes contra seus inimigos. INIMIGOS? Eram seus irmãos. Professavam a mesma crença, falavam o mesmo idioma e dividiam até mesmo o padrão alimentar. Naquela cidade e naquele tempo mostrou-se o lado negro da natureza humana. Quando o bem não se faz presente, aflora o mal em suas diversas facetas.

Quando corruptos cometem genocídio ao colocarem água nas ampolas de remédios contra o câncer, quando a falta de ambulâncias traduz o desvio de verba, quando se assiste a todo tipo de artifício e falcatruas em benefício de algumas poucas pessoas, à custa do bem de um povo a quem deveriam representar e proteger, se está cultivando uma semente do mal que a seu devido tempo irá brotar como o Mal de Hama, que se identifica como uma completa ausência de humanidade.