Aquela sim poderia ser definida
como uma relação “unha e carne”. Se pudessem um enfiaria a unha na carne do
outro. Desde que se viram pela primeira vez foi ódio à primeira vista sem
qualquer explicação sob a ótica da lógica e do bom senso, como acontece sempre
quando se trata de sentimento.
Ela trazia na carga genética a
memória de algum traço europeu exteriorizado naqueles olhos verdes sob uma pele
morena, um nariz afilado, dentes perfeitos e gestos delicados, enquanto ele era
a personificação da simpatia e querido por todos. Não era nenhum Adonis mas
nunca se afastara dos esportes e quando se cruzavam nos corredores do hospital
onde ambos trabalhavam o ar se enchia de uma carga elétrica pronta para
explosão. Alguns colegas afirmavam que mais de uma vez ouviram ruídos estranhos
nestas ocasiões. Grunhidos talvez.
Articulações celestiais o
colocaram em um leito do CTI em estado muito grave. Por mais de uma vez evoluiu
com edema agudo do pulmão, seus rins pararam de funcionar, sua musculatura não
respondia aos comandos e seus esfíncteres ignoraram seus deveres e pudores,
permitindo expor seus dejetos mais de 30 vezes ao dia.
Quem mais, com paciência
angelical, doces palavras de apoio e um olhar que ele jamais pensara poder enxergar
nela, estava ali ao lado fazendo seu asseio tantas vezes quanto necessário
fosse.
Exatamente aquele conjunto
genético híbrido!
Quando de volta às suas
atividades, ele a procurou e vaticinou: -“… o que você quiser ou precisar de
mim eu faço questão de saber”.
Várias vezes foram vistos juntos
no refeitório do hospital conversando ou gargalhando e por vezes sérios apenas trocando
figurinhas. Não se passava um dia em que ele não procurasse saber se haveria
algo que pudesse ser feito não para agradar aquela santa, mas para aplacar a culpa
que frequentemente lhe queimava a alma por ter pensado mal.
Para o desapontamento dos
românticos de plantão, não quis o destino que se consumasse na carne o que
havia começado nas garras de um ódio sem sentido. Cada um seguiu seu caminho e
nunca mais se viram. Os traços daquele rosto estão gravados em minha memória
como se nunca fossem envelhecer. Estou convicto de que cada qual guarda com um
carinho especial a lembrança do que poderia ter sido uma grande amizade e respeito
ao profissionalismo ou apenas mais um caso médico.
Acho que deveríamos nos dar mais
chances para enxergar um amigo no nosso vizinho, porque quem sabe pode ser nosso
anjo da guarda.