domingo, 7 de abril de 2013

Um Anjo da Guarda e um Caso Médico


Aquela sim poderia ser definida como uma relação “unha e carne”. Se pudessem um enfiaria a unha na carne do outro. Desde que se viram pela primeira vez foi ódio à primeira vista sem qualquer explicação sob a ótica da lógica e do bom senso, como acontece sempre quando se trata de sentimento.

Ela trazia na carga genética a memória de algum traço europeu exteriorizado naqueles olhos verdes sob uma pele morena, um nariz afilado, dentes perfeitos e gestos delicados, enquanto ele era a personificação da simpatia e querido por todos. Não era nenhum Adonis mas nunca se afastara dos esportes e quando se cruzavam nos corredores do hospital onde ambos trabalhavam o ar se enchia de uma carga elétrica pronta para explosão. Alguns colegas afirmavam que mais de uma vez ouviram ruídos estranhos nestas ocasiões. Grunhidos talvez.

Articulações celestiais o colocaram em um leito do CTI em estado muito grave. Por mais de uma vez evoluiu com edema agudo do pulmão, seus rins pararam de funcionar, sua musculatura não respondia aos comandos e seus esfíncteres ignoraram seus deveres e pudores, permitindo expor seus dejetos mais de 30 vezes ao dia.

Quem mais, com paciência angelical, doces palavras de apoio e um olhar que ele jamais pensara poder enxergar nela, estava ali ao lado fazendo seu asseio tantas vezes quanto necessário fosse.

Exatamente aquele conjunto genético híbrido!

Quando de volta às suas atividades, ele a procurou e vaticinou: -“… o que você quiser ou precisar de mim eu faço questão de saber”.

Várias vezes foram vistos juntos no refeitório do hospital conversando ou gargalhando e por vezes sérios apenas trocando figurinhas. Não se passava um dia em que ele não procurasse saber se haveria algo que pudesse ser feito não para agradar aquela santa, mas para aplacar a culpa que frequentemente lhe queimava a alma por ter pensado mal.

Para o desapontamento dos românticos de plantão, não quis o destino que se consumasse na carne o que havia começado nas garras de um ódio sem sentido. Cada um seguiu seu caminho e nunca mais se viram. Os traços daquele rosto estão gravados em minha memória como se nunca fossem envelhecer. Estou convicto de que cada qual guarda com um carinho especial a lembrança do que poderia ter sido uma grande amizade e respeito ao profissionalismo ou apenas mais um caso médico.

Acho que deveríamos nos dar mais chances para enxergar um amigo no nosso vizinho, porque quem sabe pode ser nosso anjo da guarda.