segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Dos Deuses e da Sorte

Hermanos

O que os deuses mais gostam é ver os homens fazendo planos. Reza o folclore mitológico que muitas das vezes que ouvimos trovões, na verdade são eles rindo de nós.

Não compro muito essa história de povo escolhido. Diferentemente disso acho que foi esse povo que escolheu ser o escolhido. Não posso crer em um deus que demonstre sua preferência por um dos filhos, que faça um time perder para o meu ganhar e que sendo de tal forma faccioso, possa ser eleito como parâmetro de justiça. Em momentos de destempero destrói cidades com tudo que nela existe ou inunda o mundo. Se fomos criados à sua semelhança, até que já o entendo melhor, porque por vezes os filhos nos tiram do sério.

O que Tique, a face grega de Fortuna, deusa romana da sorte mais detesta é encontrar alguém dormindo. Vira as costas vai embora e não volta nunca mais. Ela tem horror a preguiça e a indolência. Imaginem então essa figura em uma repartição pública brasileira!

É vero que embora estivesse quase nas mãos de Morpheu, vivia ávido e atento, sedento por uma oportunidade e jamais deixaria escapar uma como a que Tique colocou em minhas mãos.

Não escolhi Lia. Quando encontrei minha Valquiria fui tomado por tamanha e arrebatadora paixão que não nos sobrou opção. Aceitamos então termos sido escolhidos um para o outro, desdenhamos os sorrisos sarcásticos dos céus e fizemos mesura para Tique.

Nunca foi uma guerra fácil, um passeio no parque, tivemos que fazer desde sempre o melhor possível e estarmos sempre alerta. Já disse antes que o torno mecânico que Deus usou na confecção de Lia é de ouro e platina, foi usado apenas uma vez e está exposto em um pedestal lá no céu.

Esteve sempre à frente do tempo, criando, organizando tudo e me empurrando para cima. Agora que todo circo foi montado, que o paciente parece querer sair da UTI, Lia precisa de mim assim como eu dependo dela.

Isso toma do começo ao fim do meu dia e “muita mais faria se não fosse para tão grande amor tão curto o dia” (Daprés Camões - modificado).

Frequentemente surpreendo-me cantarolando as canções que me acostumei a entoar como hinos. Entre meus desejos está a superação dessa batalha insana pela vida e a volta ao meu lugar no coral.

Escrevo à minha família Kol Haneschamá para ratificar que tenho vocês como meus irmãos e que no tempo em que estivermos rindo por último e ofertando presentes à Tique estarei também cantando com a família outra vez.

Um baita shaná tová para todos porquê nós merecemos, lutamos por isso e no fim vamos rir por último vendo nosso time ganhar.

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Comprando Gado

Tendo surgido a oportunidade aceitei a oferta do destino e decidi investir em gado. A natureza se encarregava de aumentar a quantidade de carne e o governo era responsável por aumentar o preço. Além de lucrativo era divertido e saudável, no meio da semana ir para a fazenda, muitas vezes ainda de madrugada, tomar café com meu fraternal amigo e sair para comprar algumas cabeças nas fazendas próximas, isto é, vizinhas cerca de algumas horas de estrada. Foi mais uma oportunidade de ver e aprender coisas novas.

De certa feita ao chegarmos em uma dessas fazendas ao sul de Minas, o dono das vaquinhas e meu amigo começaram com uma conversa fiada que parecia não ter fim; sentido então nem pensar;

- ... e Neuzinha, casou ?
- tá lá né
- é fogo uai!
- com esse governo também ...
- e o tempo?! Nada ajuda sô!
- ...e essas vaquinhas felizes, pastando...
- ...

Isso foi indo foi indo e na minha cabeça nada batia com nada naquele papo furado, até que em dado instante já beirando o desespero e sem paciência cutuquei meu amigo e perguntei baixinho:

- Não vamos comprar o gado?!
- Estamos comprando! – sussurrou de volta.

De fato, após depreciar os pobres quadrúpedes tendo em contrapartida rasgados elogios do proprietário, depois de viajar na maionese por quase duas horas, divagar sobre a natureza e vagar por terrenos oníricos que mais pareciam um pesadelo, saímos de lá com 52 vaquinhas, todas prenhas. Um grande negócio para quem nem estava negociando segundo meus pobres critérios.

Deixando de lado o aspecto cômico e folclórico, chama a atenção a dificuldade que por vezes todos temos de fazer uma leitura correta daquilo que estão nos dizendo em uma linguagem própria.

Vivemos hoje na terrinha um movimento parente da primavera árabe que tanto lá como cá sacudiu representantes e representados e ainda assim, nesse paraíso de Cabral o que parece é que o gigante se virou para o lado e voltou a dormir. Dorme o gato, os ratos fazem a festa, mas a mensagem foi clara; a Bastilha está balançando!

Essa surdez seletiva está fortemente presente nas relações de massas assim como nas pessoais. O que mais vemos nesses tempos modernos é a incapacidade de se fazer uma leitura correta do que está sendo dito em alto e bom tom em um linguajar original, através de gestos, tristeza e indignação.

O que verdadeiramente surpreende é o espanto que estampa o rosto dos que se recusam a crer que Bastilha cai, que Roma era o mundo e caiu, que três mil anos divididos em apenas 17 famílias dinásticas acabou na Praça Tahir e que o povo, assim como cada um de nós, de uma forma ou de outra acaba por se fazer ouvir.

É bom ter sempre em mente que embora a conversa pudesse parecer tola e perdida, estávamos de fato comprando gado.

domingo, 7 de abril de 2013

Um Anjo da Guarda e um Caso Médico


Aquela sim poderia ser definida como uma relação “unha e carne”. Se pudessem um enfiaria a unha na carne do outro. Desde que se viram pela primeira vez foi ódio à primeira vista sem qualquer explicação sob a ótica da lógica e do bom senso, como acontece sempre quando se trata de sentimento.

Ela trazia na carga genética a memória de algum traço europeu exteriorizado naqueles olhos verdes sob uma pele morena, um nariz afilado, dentes perfeitos e gestos delicados, enquanto ele era a personificação da simpatia e querido por todos. Não era nenhum Adonis mas nunca se afastara dos esportes e quando se cruzavam nos corredores do hospital onde ambos trabalhavam o ar se enchia de uma carga elétrica pronta para explosão. Alguns colegas afirmavam que mais de uma vez ouviram ruídos estranhos nestas ocasiões. Grunhidos talvez.

Articulações celestiais o colocaram em um leito do CTI em estado muito grave. Por mais de uma vez evoluiu com edema agudo do pulmão, seus rins pararam de funcionar, sua musculatura não respondia aos comandos e seus esfíncteres ignoraram seus deveres e pudores, permitindo expor seus dejetos mais de 30 vezes ao dia.

Quem mais, com paciência angelical, doces palavras de apoio e um olhar que ele jamais pensara poder enxergar nela, estava ali ao lado fazendo seu asseio tantas vezes quanto necessário fosse.

Exatamente aquele conjunto genético híbrido!

Quando de volta às suas atividades, ele a procurou e vaticinou: -“… o que você quiser ou precisar de mim eu faço questão de saber”.

Várias vezes foram vistos juntos no refeitório do hospital conversando ou gargalhando e por vezes sérios apenas trocando figurinhas. Não se passava um dia em que ele não procurasse saber se haveria algo que pudesse ser feito não para agradar aquela santa, mas para aplacar a culpa que frequentemente lhe queimava a alma por ter pensado mal.

Para o desapontamento dos românticos de plantão, não quis o destino que se consumasse na carne o que havia começado nas garras de um ódio sem sentido. Cada um seguiu seu caminho e nunca mais se viram. Os traços daquele rosto estão gravados em minha memória como se nunca fossem envelhecer. Estou convicto de que cada qual guarda com um carinho especial a lembrança do que poderia ter sido uma grande amizade e respeito ao profissionalismo ou apenas mais um caso médico.

Acho que deveríamos nos dar mais chances para enxergar um amigo no nosso vizinho, porque quem sabe pode ser nosso anjo da guarda.