sábado, 24 de março de 2012

Svetlania em Busca do Amor

A China decidiu que não precisa de tanto minério de ferro, com isso o Brasil exportará menos, o que fará o governo impor regras mais rígidas no mercado interno para equilibrar suas contas, até mesmo para manter o padrão social dos Sarnas. Em compensação surgem por aqui novos horizontes com o petróleo.

Desde que irresponsáveis não nos causem tragédias ambientais, que o Irã não feche o Estreito de Ormuz, que não se faça a guerra entre os homens de má vontade e que no meio desse bacanal econômico as bolsas mundiais entendam que se trata apenas de uma pequena escaramuça familiar, o que era para ser um desastre econômico poderá colocar o Brasil diante de uma boa oportunidade comercial.

Embora a tendência natural seja o equilíbrio, no caso de mais um Iemenita adicionar um novo amigo egípcio no facebook que irá publicar palvras de ordem no mural do seu compadre indiano, que mora em Londres, mas recebe ajuda de sua mãe, casada com um americano radicado na Noruega, representante de uma multinaconal de tecnologia de ponta, cuja holding, Goldberg&Al_Nishfahan é sediada em Israel, é bem possível enfrentarmos ventos e tempestades.

Isabela, vivendo o final de sua era balzaquiana, foi preterida por seu marido que encontrou na secretária, exatamente os 20% que faltavam em sua mulher e “malandramente” trocou 80 por 20.

Francisco, um homem que vive as turras com seu prostatismo e acorda umas 3 ou 4 vezes para urinar, voltando a roncar em uma velocidade próxima a do som que emite quando nos braços de Morpheu, rapidamente se apossou dos 80% da bela.

Regina, frequentadora assidua do casal é irmã de Renata, que acaba de realizar uma mastectomia por não dar atenção aos sinais que o corpo lhe enviava. A irmã sã de corpo mas totalmente paranóica, já fez duas biópsias desnecessárias e sofreu a falta de orientação médica adequada, tornando-se uma intransigente defensora do paradoxo, uma hora ataca a postura mais agressiva e outra a conservadora.

Por suas frequentes dores de cabeça, à pedido do jovem médico doutor Haroldo, Isabela realizou um Doppler de carótidas com um sensato colega que em um exame mais detalhado espiou a tireóide. Ainda que não solicitado, fotografou a glândula com seu razoável nódulo sólido, mais “escuro” e com fluxo anormal de sangue. Por bem entender que havia risco aumentado, sugeriu uma punção para avaliação do tipo de célula.

Chico perdeu o medo, a vergonha e seguiu o conselho de seu urologista que pelos dados encontrados no toque e nos exames complementares sugeriu uma ultrassonografia transretal antes de se decidir pela biópsia.

Esses fatos mostram que a complexidade do mundo não é muito diferente da falta de monotonia do universo humano. Precisam os médicos distinguir entre as turbulências que podem fazer naufragar um final feliz e as monções de sensatez que acabam levando a bom porto, uma viagem iniciada com uma pesada carga de mal presságio.

Com um pouco de dramatização e ironia, bem ao estilo, esses personagens já frequentaram meu consultório, onde realizo ultrassonografias e biópsias. Mesmo tendo à mão todo arsenal necessário para um procedimento indolor e seguro, não raro temos que refrear nosso impulso, para avaliar a indicação e o momento de intervir.

Por outro lado não se pode titubear quando existem uma série de dados, muitas vezes desprezados ou nem mesmo buscados, que não só nos autorizam a prosseguir, como se constituirão em agravantes no julgamento da inação. O que não se pode aceitar de forma alguma é a cegueira intelectual.

Soube que Svetlania, uma jovem russa da cidade de Akhtubinsk, em incessante busca por seu par, se deparou com um homem pescando a beira do lago e admirada perguntou:

  • Nunca te vi, você não é daqui, certo?
  • Sou, é que estive preso por muitos anos
  • E porque?
  • Assassinato.
  • Nossa, e quem matastes?
  • Minha esposa.
  • AAAHHH! Então és solteiro!
Devemos ser atentos, atuais e fieis ao bom senso. A tecnologia não pode anular nossa capacidade de pensar e também não nos autoriza a ser meros observadores. A busca pelo diagnóstico não pode prescindir da técnica assim como não podemos colocar essa responsabilidade sobre as máquinas.

Nessas terras o médico é o imperador, mas não Deus. Não se pode ter medo da prática desses exames que nos indicam um norte, são praticamente indolores, bastante seguros e realizados em ambiente ambulatorial. A biópsia de próstata é realizada com bloqueio local ou de preferência com sedação e muito bem aceita pelos pacientes.

A intervenção guiada pela ultrassonografia, tanto da mama, como da tireóide e da próstata é uma ferramenta que deve ser usada com critério, mas da qual não se pode mais abrir mão.

Qualquer radicalismo, tanto no universo de um corpo como na cidadela da macroeconomia, é uma perigosa incursão à mente de Svetlania.

terça-feira, 20 de março de 2012

Don Juan e o Puro Sangue Marchador

Havia pouco tempo que fazia aquele caminho. Casa nova, trabalho novo e novas caras. Era meio metódico e por isso, mesmo ainda cursando sua terceira década de vida, pegava de segunda a sexta a mesma condução, à mesma hora, no mesmo ponto e até já conhecia uns outros certinhos.

Mas os sistemáticos também amam e embora seus olhos estivessem sempre as voltas com uma leitura, quando necessário não descuidava a vista do “modus masculus”.

Eis que nesse dia subiu em seu ônibus, uma menina dos seus 50 e poucos e foi sentar-se, por certo pela falta de opção, em sua diagonal. Suas curvas ainda eram sinuosas e insinuantes, seu perfume não invadia mas também não negava presença. As leves marcas no canto dos olhos, mostrava apenas os sinais de uma vida, nada de sério, mas o que matava mesmo era o coque meio que relaxado, um misto de sisuda e brincalhona que, denunciando sua forte vaidade, escorria pelo lado de sua face. O que era dúvida e incerteza há uns trinta anos, trazia agora no olhar a confiança e a maturidade, que lhe emprestava uma sensualidade singular.

Impossível não reparar que suas pernas ainda faziam muita ginástica. Quando entrou, um rápido olhar diagnóstico confirmou que estava tudo em seu quadrado.

Se fez parecer muito séria e incomodada com o atrevimento próprio da juventude onde já estivera em um tempo que lhe parecia próximo, embora as marcas dissessem que não.

Quando algumas quadras depois sobe na condução uma jovem universitária, calça justa, decote dadivoso, sorriso solto, veloz e com grande mobilidade, além de uma certeza da verdade que só tem quem a desconhece por completo, o que era para ser sisudez tornou-se um incômodo e preocupação, as pernas cruzadas se descruzaram para cruzar de novo, pois o olhar do jovem pertencia agora a nova passageira.

Mas só uma sensível alma de don Juan, perceberia o que se passava. Abriu mão então da visão daquela potranca de trote rápido e corrida ligeira para fixar-se de novo na dama, que agora se mostrava um puro sangue marchador de looongas distâncias.

Até o fim da viagem manteve-se discreto e fiel em seus olhares e a marchadora aliviada e feliz, reclusa e firme em seu papel nessa peça. Puderam em seus devaneios voar livres na imaginação e um aceitava em estado de graça as carícias que o outro lhe ofertava no templo dos sonhos.

Finalmente chegando a dama ao seu destino, obrigou-se o jovem a se levantar oferecendo espaço e a sua passagem pode ouvir em sussurro:

- obrigada!

E murmurou de volta:

- Quem agradece sou eu.

sexta-feira, 16 de março de 2012

Um Judeu Envergonhado

Há poucos dias recebi uma mensagem eletrônica de um amigo também judeu que como tal, se dizia envergonhado por essa triste passagem da história, intitulada Israel e o Massacre de Sabra e Chalita - Coletânea de Rosana Bond, sobre o qual tecerei alguns comentários. Queria começar dizendo..., mas são tantas as questões que não sei por onde dar os primeiros passos. Portanto, se tiver um pouco fora de ordem, consideremos a complexidade das questões.

Sem querer advogar em favor de atos inconcebíveis, não devemos perder o foco de nossa crítica e nem acatar a desculpa esfarrapada de que não foi por mal. Se assim se deu, foi no mínimo por falta do bem.

O massacre de Sabra & Shatila (não foi o pobre do Chalita, de quem discordo e a quem respeito) é um exemplo de lacuna na integridade moral do homem. Segundo fontes israelenses e palestinas, o crime foi perpetrado pelos maronitas, inimigos viscerais dos palestinos, enquanto o governo de Israel, responsável pela segurança da área, fingiu que nada via.

À medida que os cidadãos israelenses, oficiais e praças, membros da tropa responsável pela segurança das aldeias foram se dando conta do que se passava, em nome de uma dignidade que ainda cultivavam em si, insurgiram-se contra seus chefes e entraram na comunidade para exercer seu papel de policial, mas já era tarde. O mal triunfara naquela fatídica madrugada.

Não se pode ter como base um suposto direito exclusivo dos palestinos àquelas terras em função da sua presença. Se assim o for, prevalece o fato de os judeus estarem lá desde 1000 AC, enquanto os árabes só chegaram no século VII da era comum. A sua presença foi intermitente e nunca como uma entidade nacional, enquanto os judeus estão ali de forma ininterrupta por 3.000 anos, embora minoritários durante a dispersão.

Não faltam relatos sobre a aridez e o vazio daquelas terras que enquanto possessão jordaniana não presenciou nenhuma rebeldia dos palestinos, até o ano de 1970. Hussein havia oferecido cidadania jordaniana aos palestinos, com todos os direitos e custos que isso representava e como resposta teve a sublevação em setembro daquele ano.

Queriam esses palestinos a renúncia do rei. A resposta irada do rei foi tão brutal que não discriminou entre homens, mulheres e crianças ao ceifar milhares de vidas. Um dos frutos desse levante foi a criação do grupo terrorista Setembro Negro, que voltou suas baterias contra Israel. Também os cruzados antes de sair à caça dos muçulmanos aqueciam-se matando judeus.

Fala-se em mandato britânico como se fora uma dádiva dos céus. A Inglaterra alí chegou por meio das armas. O retorno à “terra prometida” sempre foi uma tônica dos judeus nesses dois mil anos de diáspora. Oravam voltados para Jerusalem e despediam-se no Pessach com a promessa – Le shaná baá be Ierushalaim – Ano que vem em Jerusalém, o centro ideológico e político desse povo, que sempre entendeu sua ausência como uma anomalia a ser corrigida.

Falar em percentual de divisão é uma discussão estéril. Israel tem 30% de árabes como cidadãos, inclusive com assento no parlamento. Ninguém mandou os judeus à Palestina, nome que, aliás, foi uma criação dos romanos, não satisfeitos em expulsar os judeus de suas terras ainda deram a ela o nome de Philistina, em homenagem a seus inimigos históricos. Seria algo como a Inglaterra esticar sua aventura nas Malvinas, destronar o Brasil e dar a essa terra o nome de Argenta, sem qualquer alusão aos políticos brasilenhos que só pensam “en la plata”.

Foi uma conquista e um retorno à casa. A compra de terrenos foi absolutamente legal. Segundo as regras da modernidade, trocou-se dinheiro por terra. Cerca de 600 mil judeus viviam em países árabes em terras por eles adquiridas legalmente por várias gerações e nunca se tentou um levante judeu contra o regime do país em que moravam, nem mesmo quando foram expulsos com uma mão na frente e outra atrás, por questões meramente filosóficas de seus governos.

Frases de efeito não vestem o errado de certo. Citações de governantes ou escribas não dão autenticidade a problemas complexos que torneiam a história da humanidade. Falar em atos de terrorismo de parte a parte é passar por cima de questões básicas e fundamentais, quais sejam, a incapacidade do ser humano de resolver suas querelas por meio do diálogo. Uma vez rompida a relação diplomática, trata-se de forma e nível da violência. Esta se vai estratificando e galgando níveis inconcebíveis por uma mente sã.

Antes de questionar a degola de inocentes, a urina sobre corpos de guerreiros tombados em ação, a rajada em pente fino entregando à morte populações de civis e tantas outras formas de barbaridades, devemos nos bater com toda nossa energia contra a truculência como opção. Condenar um soldado que assassina indiscriminadamente civis distantes dos campos de batalha sem apontar para os responsáveis por colocá-lo em ambiente hostil por anos e não esperar que enxergue violência na simples figura de uma dona de casa comprando frutas na feira, ultrapassa a linha da ingenuidade. Trata-se do cultivo da maldade em uma de suas expressões mais cruéis.

Não se pode invocar a violência que vêm sofrendo todo um povo para deslocar uma nação constituída de seu lugar. É cômodo culpar o Holocausto pela criação de Israel e depois negá-lo, desta forma negando também o direito de existência desse país.

Algumas das manchetes trazidas pelo autor da mensagem são questionáveis, outras contestáveis e uma porção delas já circulam pela área da fantasia.

Sou brasileiro e nem por isso envergonho-me de sê-lo por que não cerro fileiras com os da sarna e canalheiros e embora com o corpo um pouco abatido, ainda carrego no peito a rebeldia dos meus 20 anos e o grito na garganta de que o povo unido jamais será vencido.

Da mesma forma orgulha-me ser judeu por fazer parte de um grupo que vem contribuindo para a evolução técnica da humanidade, que não cedeu às perseguições de 3000 anos, que ainda ri e anda de cabeça erguida e que se insurge contra o mal, esteja ele onde estiver.

Mas é claro, tudo isso é apenas minha opinião, baseada nos relatos colhidos na imprensa e nos contos que o mundo conta.

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segunda-feira, 12 de março de 2012

Dançar não pode


Não sei o que faz um pai, vivendo às margens do grande rio, a todo instante pronto para sua travessia, pedir a seu filho ainda criança, que se insurja contra um império mais forte e poderoso. Por ter vivido a maior parte de sua vida no lodo da violência, conhecendo as mazelas das batalhas, deveria lhe restar um pouco de bom senso para não deixar como herança essa carga ignóbil a quem mais devia prezar.

Não era o que pensava o cartaginês Amílcar Barca, pai de Aníbal. Eu diria a meu herdeiro que achasse uma boa moça, fugisse das confusões, criasse uma bonita prole e fosse viver feliz.

É intrigante a morte coletiva de golfinhos que se lançam à praia e sucumbem na areia. O mesmo fenômeno ocorre periodicamente com certos tipos de roedores que atravessam milhares de quilômetros para por fim a própria existência, jogando-se no mar. Eventualmente surge um salvador da pátria, que encontra no sacrifício de todo grupo de prosélitos, a melhor saída para as agruras da vida, o que é um tremendo contrassenso. Mas a história está cheia deles.

Meu pai contava que de certa feita, na Pérsia moderna, um observante buscou orientação com seu Aiatolah:
- mestre, dançar é permitido?
- Nem pensar, aqueles movimentos libidinosos do corpo, seus rostos colados mirando o infinito, os olhares suados e quem sabe até sussurros... uma clara manifestação do demônio.
- e transar de quatro?
- pode
- ponta cabeça, de trás e de lado?
- pode, pode, pode
- na cozinha, na escada e na mesa?
- pode, pode, pode
- assim e assado
- pode
- e de pé?
- NÃO ! Pode parecer que está dançando.

E nem adianta argumentar. É dogmático. Aqueles que estão absolutamente certos da verdade estão em verdade com suas mentes fechadas para uma possível verdadeira verdade. Pode parecer loucura, mas é a mais pura verdade. Ih!

A guerra leva o homem a um estágio anterior de sua evolução. O exercício contínuo da barbárie desperta a besta que vive domada e adormecida em cada um de nós.

Sem mencionar o estrago que provocou em dezenas de milhares de constelações familiares romanas, o cerco imposto a Roma por Aníbal custou a seus homens algumas temporadas na lama longe de suas mulheres. Quando me atraso no trabalho já corro quase insano para os braços de minha amada, o que dirá de alguns invernos.

Nas últimas 72 horas cerca de 160 bombas foram lançadas de Gaza no território israelense por grupos independentes que não tem apoio de sua liderança, hoje fragmentada. Bibi foi aos States pedir que Obama baixe um porrete mais ou menos preventivo no Irã, que dá suporte e vida ao Hamas. O americano quer que os israelenses façam esse trabalho sujo, mas precisa estar certo de que não haverá falhas. Justo na antiga Pérsia, que sob a égide do grande aquemenida Dario, livrou os judeus das mãos de Nabucodonossor, responsável pela primeira destruição do Grande Templo e em seguida a escravidão do povo de Israel.

Se não pararem os Irãs agora, a linha de frente da guerra é a que menos sofrerá. As bombas cairão no centro das grandes cidades penalizando civis. Por enquanto morrem misteriosamente cientistas, os fundos necessários para alimentar o povo estão enriquecendo urânio, a verba de educação aquece o forno de Lúcifer, infindáveis reuniões são agendadas na ânsia de encontrar o mais eficiente método de anulação de diversos povos e tudo em nome da modernidade e da paz entre os homens de boa vontade.

Por aqui bolsas de estudo são oferecidas a filhos de milionários, o exemplo que vem das casas da lei são os mais nefastos, a choldra padece e seus lideres enriquecem, o sexo dos anjos, ainda não definido, ocupa as primeiras páginas dos jornais, programas como o bolsa família são um tiro no pé, a violência nas ruas aponta para as lacunas das UPPs, Ricardo Teixeira, vulgo “o pulha” posa de herói, mas pelo menos o país tem verão, futebol e carnaval!

Há pouco tempo uma peça publicitária advertia que se fizéssemos do carro uma arma, acabaríamos nós mesmos vitimas desse mal. Estamos sendo punidos por não usar com sabedoria a democracia e a liberdade.

O homem continua lançando-se às praias e ao mar como certos golfinhos e roedores, a fazer promessas suicidas em defesa de sua honra, usar a brutalidade como meio de se chegar à paz, a enxergar um horizonte pontual e esquecer que faz parte de um universo.

Tudo é permitido, mas um comentário nem tão diplomático nem pensar, é mexer com nossos brios, tocar na ferida, um chamamento à guerra, mesmo porque se nada fizermos corremos o risco de parecer que estamos dançando.

Sei lá, coisa do demônio!

quinta-feira, 8 de março de 2012

Só morrer!

Há alguns dias, encontrei um amigo que havia estado presente no sepultamento do meu pai. Lembramos de passagens hilárias protagonizadas por ele e pelas tantas pediu que enviasse por e-mail, as palavras que eu dissera naquele dia, que o tocara fundo.

Nunca houve nada escrito, foi uma explosão de emoção entrecortada por um nó na garganta que me roubava constantemente a voz. 

Terminada a primeira parte das orações, a família foi convidada a dar um depoimento. Olhamo-nos como que jogando a responsabilidade nos ombros do outro e em resposta cada qual teve o silêncio do seu irmão. Percebendo que ninguém tinha a intenção e nem condição de falar, fui lançado à frente por uma estranha força. Aceitei aquilo como um pedido do papai que, como vaidoso que era, teria adorado ser lembrado com palavras, sua marca registrada. 

Em homenagem ao bom piadista que fazia graça da desgraça, comecei contando, ainda sobre o caixão, uma história que ele havia me passado em meio a muitas conversas que tivemos: Três pessoas foram condenadas à morte e como desejo derradeiro, o primeiro escolheu uma farra, o segundo quis fazer um discurso e o terceiro, que era ele, queria morrer antes do discurso. Busquei então ser breve e o que disse foi mais ou menos isso: 

“Quando buscava uma resposta aos gemidos dos doentes, nos primórdios da minha vida acadêmica, ouvia com freqüência de alguém mais experiente que bastaria um analgésico e passava a dor. Para a minha felicidade, fundamental na minha formação profissional e como ser humano, naquele início de vida médica, tive a oportunidade de me ver do outro lado, na situação do paciente e pude perceber que na maioria das vezes é preciso mais, é necessário um suco de laranja, um ombro amigo, alguém que lhe ouça, enfim alguém ao seu lado. 

Meu pai era esse cafuné. Nunca nos faltou nas horas de aperto e apontava sempre para onde ele achava ser o melhor caminho, deixando para nós a palavra final. 

A ética foi um traço que há milhares de anos uniu alguns homens em torno de uma idéia. Adonai elocheinu, adonai echad (ch = rr) - O senhor é nosso Deus e Deus é único. 

Se dizia um ateu de corpo e alma, mas fez parte daquele grupo antigo no sentido de seguir, como na ideia original, uma linha reta de comportamento. Fez da ética uma bandeira, viveu por ela e não arredou pé um centímetro sequer, mesmo nos momentos de maior crise. Uma de suas marcas mais fortes, que deixou de herança aos filhos, foi o amor que nutriu pela Dorinha, minha mãe. 

Remetendo-me de volta aos hospitais, lembro então quão tolo fui. Durante toda minha vida médica, quando buscava consolar um familiar de um paciente que havia falecido, dizia – era velhinho, uma vela que se apagou, viveu sua vida e agora acabou! 

Quanta tolice! Que involuntária crueldade. Hoje bato no peito e peço perdão a todos a quem havia dito tamanha asneira. Como diz Lia, nosso velho nunca é velho. 

Por toda herança cultural que papai nos deixou, pelo exemplo de quem foi, pela sua forte presença, hoje, outra vez do outro lado, descubro que meu pai não acabou, ele apenas morreu!” 

Saudades pai.