Nunca houve nada escrito, foi uma explosão de emoção
entrecortada por um nó na garganta que me roubava constantemente a voz.
Terminada a primeira parte das orações, a família foi convidada
a dar um depoimento. Olhamo-nos como que jogando a responsabilidade nos ombros
do outro e em resposta cada qual teve o silêncio do seu irmão. Percebendo que ninguém
tinha a intenção e nem condição de falar, fui lançado à frente por uma estranha
força. Aceitei aquilo como um pedido do papai que, como vaidoso que era, teria
adorado ser lembrado com palavras, sua marca registrada.
Em homenagem ao bom piadista que fazia graça da desgraça,
comecei contando, ainda sobre o caixão, uma história que ele havia me passado
em meio a muitas conversas que tivemos: Três pessoas foram condenadas à morte e
como desejo derradeiro, o primeiro escolheu uma farra, o segundo quis fazer um
discurso e o terceiro, que era ele, queria morrer antes do discurso. Busquei então
ser breve e o que disse foi mais ou menos isso:
“Quando buscava uma resposta aos gemidos dos doentes, nos
primórdios da minha vida acadêmica, ouvia com freqüência de alguém mais
experiente que bastaria um analgésico e passava a dor. Para a minha felicidade,
fundamental na minha formação profissional e como ser humano, naquele início de
vida médica, tive a oportunidade de me ver do outro lado, na situação do
paciente e pude perceber que na maioria das vezes é preciso mais, é necessário
um suco de laranja, um ombro amigo, alguém que lhe ouça, enfim alguém ao seu
lado.
Meu pai era esse cafuné. Nunca nos faltou nas horas de
aperto e apontava sempre para onde ele achava ser o melhor caminho, deixando
para nós a palavra final.
A ética foi um traço que há milhares de anos uniu alguns
homens em torno de uma idéia. Adonai elocheinu, adonai echad (ch = rr) - O
senhor é nosso Deus e Deus é único.
Se dizia um ateu de corpo e alma, mas fez parte daquele
grupo antigo no sentido de seguir, como na ideia original, uma linha reta de
comportamento. Fez da ética uma bandeira, viveu por ela e não arredou pé um
centímetro sequer, mesmo nos momentos de maior crise. Uma de suas marcas mais
fortes, que deixou de herança aos filhos, foi o amor que nutriu pela Dorinha,
minha mãe.
Remetendo-me de volta aos hospitais, lembro então quão tolo
fui. Durante toda minha vida médica, quando buscava consolar um familiar de um paciente
que havia falecido, dizia – era velhinho, uma vela que se apagou, viveu sua
vida e agora acabou!
Quanta tolice! Que involuntária crueldade. Hoje bato no
peito e peço perdão a todos a quem havia dito tamanha asneira. Como diz Lia,
nosso velho nunca é velho.
Por toda herança cultural que papai nos deixou, pelo exemplo
de quem foi, pela sua forte presença, hoje, outra vez do outro lado, descubro que
meu pai não acabou, ele apenas morreu!”
Saudades pai.
Lindo texto, Arnaldo. Além de transmitir sensibilidade, é bem escrito - fato raro nos dias de hoje a que, por isso mesmo, dou grande valor. Adorei a historinha do último pedido dos três condenados à morte. Teu pai tinha um ótimo senso de humor! Bjs!
ResponderExcluirExcelente! Como é dificil percebermos que nossos velhos chegaram a um "point of no return"!
ResponderExcluirE que grande qualidade... manter o humor nas horas mais dificeis. Outra grande dica pra atravessarmos essa estrada com galhardia