Era um domingo
preguiçoso. Sentados em sua sala que abrigava uma singela, porém valiosa
pinacoteca, além de várias antiguidades, nosso papo fluía como uma nau
desgovernada ao sabor da vontade de Éolo, deus dos ventos.
Mudávamos de assunto em um piscar de olhos, nossa mente flutuava nas asas de
Ícaro quando de súbito ele me vem com essa:
- escolhe alguma
coisa
- Ah papai, para
com isso! – Mesmo sabendo que nada é eterno, ainda hoje tenho dificuldade de
aceitar a finitude dos meus pais.
Quando criança
nunca passou pela minha cabeça meu universo longe das salas de aula e depois,
já adulto, jamais me vi sem trabalhar. Em uma pobre analogia, me é difícil
conceber aquela constelação familiar se desfazendo. Essa deveria ser uma instituição divina e intocável!
- Eu quero que
cada um dos meus filhos sinta o gostinho do meu sangue quando eu partir.
- Que coisa mais
mórbida...
me atalhando...
- faz o que eu
estou te pedindo.
- Ok, eu quero o
leão.
Segundo a
crônica familiar, o pai do papai havia comprado aquela figura de um leão
talhada em madeira com cerca de 20 cm de altura em um antiquário como presente
de noivado. Na minha infância habituei-me a vê-la na casa dos meus avós, depois
na casa dos meus pais e agora com garbo, na estante da minha sala.
Valor material
não tem. Ninguém vai querer aquele leão, mas é o gostinho do meu pai. Dizer que
aquele gordo seguro em prol dos filhos ou o apartamento não tem significado é
muita hipocrisia, por outro lado é a mais pura verdade que não identifica tanto
um ser querido como aquela chavinha de fenda para óculos com mais de 40 anos
guardada na gaveta, o martelo da Chechênea nunca dantes usado, a caneta
tinteiro que já não vê tinta há décadas, um carimbo que acompanha a caneta e
outras pequenas coisas como uma antiga figura de leão talhado em madeira.
Essas lembranças
ficam entre o bem material e uma matéria do bem, bem ao estilo d’alma, que afinal
é o que fica de bom.