sexta-feira, 29 de junho de 2012

O Leão, um ente querido


Era um domingo preguiçoso. Sentados em sua sala que abrigava uma singela, porém valiosa pinacoteca, além de várias antiguidades, nosso papo fluía como uma nau desgovernada ao sabor da vontade de Éolo, deus dos ventos. Mudávamos de assunto em um piscar de olhos, nossa mente flutuava nas asas de Ícaro quando de súbito ele me vem com essa:

- escolhe alguma coisa
- Ah papai, para com isso! – Mesmo sabendo que nada é eterno, ainda hoje tenho dificuldade de aceitar a finitude dos meus pais. 

Quando criança nunca passou pela minha cabeça meu universo longe das salas de aula e depois, já adulto, jamais me vi sem trabalhar. Em uma pobre analogia, me é difícil conceber aquela constelação familiar se desfazendo. Essa deveria ser uma instituição divina e intocável!

- Eu quero que cada um dos meus filhos sinta o gostinho do meu sangue quando eu partir.
- Que coisa mais mórbida...
me atalhando...
- faz o que eu estou te pedindo.
- Ok, eu quero o leão.

Segundo a crônica familiar, o pai do papai havia comprado aquela figura de um leão talhada em madeira com cerca de 20 cm de altura em um antiquário como presente de noivado. Na minha infância habituei-me a vê-la na casa dos meus avós, depois na casa dos meus pais e agora com garbo, na estante da minha sala.

Valor material não tem. Ninguém vai querer aquele leão, mas é o gostinho do meu pai. Dizer que aquele gordo seguro em prol dos filhos ou o apartamento não tem significado é muita hipocrisia, por outro lado é a mais pura verdade que não identifica tanto um ser querido como aquela chavinha de fenda para óculos com mais de 40 anos guardada na gaveta, o martelo da Chechênea nunca dantes usado, a caneta tinteiro que já não vê tinta há décadas, um carimbo que acompanha a caneta e outras pequenas coisas como uma antiga figura de leão talhado em madeira.

Essas lembranças ficam entre o bem material e uma matéria do bem, bem ao estilo d’alma, que afinal é o que fica de bom.

domingo, 24 de junho de 2012

Sorri é o cacête


Forças protocolares de um país no hemisfério sul, obrigaram o então presidente, em função de seu posto, a receber um Deputado desafeto político e tido pelo anfitrião como a personificação da antiética. Os holofotes da imprensa ávidos por registrar o inusitado explodiram seus flashes sobre a dupla. Em meio aquela cena, um sisudo general ouve do deputado:
- sorria presidente.

- sorrio se eu quiser, estou em meu gabinete e na minha casa! Aqui faço eu o que eu quero!

Caem as cortinas.

O presidente não era exatamente um retrato de candura. Vindo da cavalaria do exército, não raro se confundia cavalo e cavaleiro. Dizia preferir o cheiro do bicho ao do homem (do ser humano, bem entendido), sugeria a um grupo de crianças o suicídio coletivo por se verem suas famílias obrigadas a viver com um salário mínimo, era avesso a imprensa e reza o cancioneiro popular que debaixo de seu quepe de general cultivava frondosa galhada.

Herdei do meu pai a desconfiança da verdade absoluta. Não sei se cultivou esse traço por ser advogado ou se tornou bacharel por já ter essa característica e por não dispor de provas contundentes do dito delito posso apenas lembrar que não basta à mulher de César ser correta, tem também que parecer correta. Diz ainda aquele mesmo cancioneiro que o que está na boca do povo ou foi ou é ou será. De qualquer forma resta- nos apenas torcer para que o ninho de amor do casal não tenha sido dividido com surfistas marombados.

Nessa terra do imaginário, um ex-presidente recebe e chama de camarada um líder vindo do extremo oriente, reconhecidamente um contumaz desrespeitador dos direitos humanos, lidera um partido que se afundou na lama, se acha acima do bem e do mal, assim aparece sem melindres sorrindo ao lado de figuras como Sarney, Renan e Collor e por último ao lado daquele deputado sobrevivente, ainda uma nefasta figura do lado escuso da política e da ética.

Eu que me esgoelei nas ruas prometendo que a união do povo impediria sua derrota moral, me surpreendo com estranha e saudosa lembrança do ex-general cujas palavras foram registradas na imprensa, mas não como haviam sido cozidas em seus limitados neurônios.

O mínimo que me vem à cabeça para esse palhaço que cultiva a ignorância como um troféu é a expressão do mal falado galhado:

Sorri é o cacête!

domingo, 10 de junho de 2012

Sobe e Desce

Iankel era um predestinado. Nascera em uma família tradicional com tudo muito em seu devido lugar, no tempo certo e da forma correta. Da escola trazia sempre boas notas, era querido pelos coleguinhas e o preferido das professoras. Na faculdade era cercado de amigos. Para descrevê-lo de forma sucinta diria que era um líder entre os homens e o tipo querido das mulheres.

Seus pais e os pais destes eram pessoas destacadas na comunidade, não faltavam ao culto do Shabat e além de cumprir com o que acreditavam ser sua obrigação sob a ótica de suas convicções religiosas, contribuíam generosamente para causas sociais.

Cresceu nesse clima de retidão e dogmas, ambientado nas histórias da bíblia e exemplos da Torah, por onde viajava sua imaginação e delírios em mil e uma noites. Era assíduo nas organizações juvenis onde se tornou um expoente. Não foi surpresa, portanto quando anunciou seu desejo de se tornar um rabino, pelo contrário, era uma expectativa da família e foi comemorada como uma vitória de eleição presidencial.

A vaidade é talvez o mais terrível dos pecados capitais. Junte-se a isso a presunção e o resultado é o desaparecimento súbito do chão sob seus pés. Lembro-me de um campeonato de lutas marciais mistas, ainda nos primórdios dessa modalidade, onde o grande campeão e disparado favorito, entrou no ringue contra um ilustre desconhecido. De guarda baixa e nariz empinado acreditava piamente que a sua figura seria o suficiente para espantar a valentia de qualquer um. Foi atingido já nos primeiros segundos por uma martelada no queixo e só soube do ocorrido muitas horas depois, já no leito do hospital, devidamente atendido e medicado.

Outra forma de garantir a derrota é subestimar o inimigo. A história nos presenteia com inúmeros exemplos. Geralmente as vítimas esquecem de pequenos detalhes, justo do tipo que por milênios vem moldando a história da humanidade. Se isso, se aquilo!

E lá ia a vida dando linha a Iankel, quando chega a hora de assumir a liderança em uma sinagoga. No primeiro dia subiu ao púlpito tal qual o campeão, muito confiante, nariz para cima, sem qualquer sinal de humildade que a generosidade da vida se furtou em plantar naquele fértil terreno.

A preleção foi pontuada por uma inesperada gagueira, se perdeu entre o início o fim e o meio, sua lógica foi míope e o que era para ser um triunfo mostrou-se o caos.

Desceu abatido e cabisbaixo, uma figura distante daquela que se via habitualmente e foi direto buscar explicação na sabedoria do velho rabino cuja experiência de vida estava disfarçada sob sua longa barba, marcada em sua pele e em sua coluna curvada.

Dos labirintos das mais diferentes culturas, mosaica, hindu, muçulmana e demais, o velho trouxe à tona com uma espantosa simplicidade um misto de cristalina sabedoria e profícua experiência:

- Se você tivesse subido como desceu, teria descido como subiu.

Enquanto isso nos céus...bem isso é uma outra história.


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