“ - Essa mulher
não tem bunda...!” Era ainda pequeno quando ouvi isso de meu pai. Nem quis
olhar. Imaginei que pudesse ser a expressão traseira oposta a de um prognata.
Ao mesmo tempo percebi nele uma inspiração profunda, o aperto dos lábios e o
movimento rápido dos olhos. A
imaturidade me vez criar uma história que se adaptava às necessidades imediatas
das minhas fantasias, sem uma análise mais cuidadosa e criteriosa da informação
recebida.
A nossa mente
faz isso. Nas muitas das vezes temos uma concepção das coisas que é difícil de
mudar. É mais fácil adaptar o que vemos ao nosso universo do que ter o espírito
flexível para aceitar o que não é espelho.
Vivemos hoje em
um mundo onde a informação viaja tão rápido que em sua grande maioria carece de
constatação e como ninguém quer ficar para trás, passe-se adiante como uma
verdade incontestável.
Na defesa de
tese de minha filha, há um episódio curioso. Há poucos anos, no meio de uma
daquelas manifestações de palestinos em Israel, um jovem começou a vociferar em
árabe, gesticulando como um louco. Mais do que ágil, um fotógrafo de um grande
jornal registrou a cena e enviou via internet à agência central que
imediatamente colocou a matéria na rede, copiada por outras agências menores, referindo-se
ao ator como uma vítima da truculência do exército israelense. Minutos depois soube
o fotógrafo através de seu intérprete que o jovem prometia a vinda de um
messias, era um doente psiquiátrico e motivo de galhofa dos próprios manifestantes.
O mal já estava ciberneticamente feito. Faltou maturidade para digerir os
fatos.
Hoje, mais
velho, mais condescendente e mais lento em quase tudo, procuro analisar sem
precipitação os fatos que se apresentam de forma a poder curtir amigos que se
fizeram ocultos por causa de uma primeira impressão mal digerida, calar e
permitir que o silêncio possa clarear minhas idéias para nortear meus atos e
mostrar os dentes em um largo sorriso no lugar de uma pequena ameaça.
Estava de
plantão quando o Iraque foi invadido pelos EUA. Fiquei feliz pela queda de um anticristo,
mas a vida já me havia feito mais experiente e fiquei como se diz, com um pé
atrás, sabendo que este caíra, provavelmente pelas mãos de outro anticristo. O tempo
mostrou que não existiam as armas prometidas, a bilionária reconstrução do país
passa pelas mãos de contribuintes de campanhas políticas e a administração pelo
crivo de pessoas que não sabiam nem mesmo o alfabeto local. Um exército de
ditos terroristas foi criado pelo administrador do momento ao desfazer as
forças armadas iraquianas em uma penada. Do dia para a noite, milhares de
iraquianos armados e com as chaves do paiol, perderam sua função e capacidade
de levar para casa o leite das crianças, por um capricho do salvador, que sob
uma visão obtusa, veio para libertar.
A Inglaterra,
representante da moral e bons costumes no além mar, têm em sua história
atitudes que envergonham a raça humana. Entregou a Áustria para Hitler na
esperança de se ver distante da briga que se avizinhava, mas pagou caro, recebendo
por três meses sobre suas cabeças, as mensagens de agradecimento dos alemães através
das bombas V1 e V2. Foi de extrema crueldade em meados do século 19, período da
grande fome na Irlanda em virtude da praga na plantação das batatas, sua
principal fonte de alimento, contribuindo para a morte por inanição de mais de
800 mil irlandeses. Ao agir por baixo dos panos na troca do Paraguai pelo
Uruguai da Triplica Aliança e pelas palavras do seu embaixador ao declarar na
Liga das Nações que só sossegariam com a eliminação do último paraguaio ainda
no ventre materno. Dizimaram cerca de 90% de sua população masculina ativa. É
claro que suas ações sempre foram pautadas pelas melhores das intenções, muitas
das vezes mal interpretadas justamente pelos que se aprofundavam no tema.
Por exemplos
como esses é que devemos aguçar nosso julgamento indo até bem fundo, no cerne
das questões que surgem em nosso caminho para não cometer injustiças.
E lá estávamos
papai e eu, agora já vovô e papai, sentados na orla de Ipanema tomando
inocentemente uma água de côco, por vezes falando e outras curtindo a companhia
um do outro, ouvindo o ruído das ondas e das ruas quando outra vez ele vaticina
– “Aquela mulher não tem bunda” – dessa vez olhei e esperei um pouco para
digerir o que significava dizer que aquela enviada do Olimpo não tinha bunda,
quando veio a seu tempo, acompanhada de uma leve contração da comissura labial
a complementação de seu pensamento – “A sua coluna vertebral desemboca em um
poema de amor!”
Morro de
saudades do meu pai.
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