quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

A Mulher Sem Bunda


“ - Essa mulher não tem bunda...!” Era ainda pequeno quando ouvi isso de meu pai. Nem quis olhar. Imaginei que pudesse ser a expressão traseira oposta a de um prognata. Ao mesmo tempo percebi nele uma inspiração profunda, o aperto dos lábios e o movimento rápido dos olhos.  A imaturidade me vez criar uma história que se adaptava às necessidades imediatas das minhas fantasias, sem uma análise mais cuidadosa e criteriosa da informação recebida.

A nossa mente faz isso. Nas muitas das vezes temos uma concepção das coisas que é difícil de mudar. É mais fácil adaptar o que vemos ao nosso universo do que ter o espírito flexível para aceitar o que não é espelho.

Vivemos hoje em um mundo onde a informação viaja tão rápido que em sua grande maioria carece de constatação e como ninguém quer ficar para trás, passe-se adiante como uma verdade incontestável.

Na defesa de tese de minha filha, há um episódio curioso. Há poucos anos, no meio de uma daquelas manifestações de palestinos em Israel, um jovem começou a vociferar em árabe, gesticulando como um louco. Mais do que ágil, um fotógrafo de um grande jornal registrou a cena e enviou via internet à agência central que imediatamente colocou a matéria na rede, copiada por outras agências menores, referindo-se ao ator como uma vítima da truculência do exército israelense. Minutos depois soube o fotógrafo através de seu intérprete que o jovem prometia a vinda de um messias, era um doente psiquiátrico e motivo de galhofa dos próprios manifestantes. O mal já estava ciberneticamente feito. Faltou maturidade para digerir os fatos.

Hoje, mais velho, mais condescendente e mais lento em quase tudo, procuro analisar sem precipitação os fatos que se apresentam de forma a poder curtir amigos que se fizeram ocultos por causa de uma primeira impressão mal digerida, calar e permitir que o silêncio possa clarear minhas idéias para nortear meus atos e mostrar os dentes em um largo sorriso no lugar de uma pequena ameaça.

Estava de plantão quando o Iraque foi invadido pelos EUA. Fiquei feliz pela queda de um anticristo, mas a vida já me havia feito mais experiente e fiquei como se diz, com um pé atrás, sabendo que este caíra, provavelmente pelas mãos de outro anticristo. O tempo mostrou que não existiam as armas prometidas, a bilionária reconstrução do país passa pelas mãos de contribuintes de campanhas políticas e a administração pelo crivo de pessoas que não sabiam nem mesmo o alfabeto local. Um exército de ditos terroristas foi criado pelo administrador do momento ao desfazer as forças armadas iraquianas em uma penada. Do dia para a noite, milhares de iraquianos armados e com as chaves do paiol, perderam sua função e capacidade de levar para casa o leite das crianças, por um capricho do salvador, que sob uma visão obtusa, veio para libertar.

A Inglaterra, representante da moral e bons costumes no além mar, têm em sua história atitudes que envergonham a raça humana. Entregou a Áustria para Hitler na esperança de se ver distante da briga que se avizinhava, mas pagou caro, recebendo por três meses sobre suas cabeças, as mensagens de agradecimento dos alemães através das bombas V1 e V2. Foi de extrema crueldade em meados do século 19, período da grande fome na Irlanda em virtude da praga na plantação das batatas, sua principal fonte de alimento, contribuindo para a morte por inanição de mais de 800 mil irlandeses. Ao agir por baixo dos panos na troca do Paraguai pelo Uruguai da Triplica Aliança e pelas palavras do seu embaixador ao declarar na Liga das Nações que só sossegariam com a eliminação do último paraguaio ainda no ventre materno. Dizimaram cerca de 90% de sua população masculina ativa. É claro que suas ações sempre foram pautadas pelas melhores das intenções, muitas das vezes mal interpretadas justamente pelos que se aprofundavam no tema.

Por exemplos como esses é que devemos aguçar nosso julgamento indo até bem fundo, no cerne das questões que surgem em nosso caminho para não cometer injustiças.

E lá estávamos papai e eu, agora já vovô e papai, sentados na orla de Ipanema tomando inocentemente uma água de côco, por vezes falando e outras curtindo a companhia um do outro, ouvindo o ruído das ondas e das ruas quando outra vez ele vaticina – “Aquela mulher não tem bunda” – dessa vez olhei e esperei um pouco para digerir o que significava dizer que aquela enviada do Olimpo não tinha bunda, quando veio a seu tempo, acompanhada de uma leve contração da comissura labial a complementação de seu pensamento – “A sua coluna vertebral desemboca em um poema de amor!”

Morro de saudades do meu pai.

Nenhum comentário:

Postar um comentário